Capítulo I
Não devia ter feito aquilo, pensava. E ainda por cima por uma ninharia que rapidamente desapareceria da face da carteira. Por apenas 500 euros...teria valido o esforço? Eh, que se lixe. Não será a primeira vez que assaltava uma loja para depois arrepender-me no segundo seguinte. Havia qualquer coisa, para além do dinheiro, que me atraía no facto de assaltar lojas e casas. Há quem fale em adrenalina. Pode ser. Mas o dinheiro dá-me mais jeito.
Enquanto passeava por estas imagens, a minha mão passeava pelo Joaquim. Um gato preto que acolhera há algumas semanas. Era a minha única companhia. O meu coração batia lentamente, misturando-se com o ritmo descompensado do felino que ronronava junto do meu peito.
Afagava o Joaquim, o gato preto que um dia apanhara da rua. Se para muitos o gato preto é sinal de maldição e perdição, para mim foi a salvação. Um dia de sorte.
As coisas na altura não me corriam lá muito bem – pensando bem tal como agora – e por uma sorte tremenda, a polícia não me apanhara. O Joaquim, incógnito, desconhecido na altura embora um ser vivo e existente, salvara-me a pele sem o saber. Para o compensar, achei justo levá-lo para casa. Não nasci para ter gatos, cães ou periquitos. Sou mais do género de atirar a matar se um destes bichos me chateia a cabeça. Confesso que o meu limite de paciência chegou uma vez aos incríveis 30 segundos. A partir daí tudo resolve-se com uma bala. E não se fala mais nisso.
Voltando. Nesse dia, depois de um pequeno assalto a uma loja de bairro, fui eu assaltado em minha casa por um bando de polícias. Alguém dera com a língua nos dentes, e eu, rapaz para não gostar de traições. Seria parvo se depois do assalto desse dia fosse descansado para casa. Se a polícia estava à espera de me ver deitado no sofá a ver televisão logo após um serviço, então são bem mais estúpidos do que alguma vez imaginara. Não, eu estava a vários quilómetros de distância, numa pequena garagem que para além de me dar guarida e refúgio nos momentos pós-gatunagem, era o meu armazém de artigos "emprestados". O negócio não ia bem, roubar já não é o que era.
Mas mal sabia eu que a polícia, para além de descobrir a minha casa, conseguiu obter que a levaram até ao meu barraco. Fiquei a saber disso no momento em que descarregava uma televisão de plasma para o dito armazém quando, e acreditem que eu não acredito nestas coisas, senti que algo não estava a correr bem. Senti-lhes o cheiro à distância. Não sei se era das nódoas de imperiais ou dos dedos oleados em tremoço, mas há um um cheiro característico de polícia que os denuncia a quilómetros.
Caguei para a televisão. Assustado, como se o cheiro do bófia me tivesse explodido nas narinas, deixo cair a televisão de plasma em cima do pé. A custo começo a correr. Fico com a certeza de perder o fruto do trabalho e com a estranha sensação de ter perdido também o pé. A minha súbita fuga passa a ser de corrida desenfreada para uma pressa ligeira. A polícia já me cheirou e começa, de arma e punho a correr atrás de mim. “Pára caralho! Polícia!”. Ok, eu não sou parvo, muito menos surdo. Nem percebo porque é que se fazem anunciar. Ei, vocês já se esqueceram de que eu sou o gatuno, não preciso que me digam que são o polícia. Mas estamos aqui a brincar ou a fazer isto a sério?
Corria com uma perna, coxeava com a outra. Obviamente, nesta luta de pernas quem ganhava eram os dois gordos que corriam atrás de mim. Já não anunciavam a sua chegada com a voz mas sim através de balas. Eu não fui à tropa e muito menos a uma guerra. Mas não precisava disso para saber o que era um silvo a passar nas minhas orelhas.
Correndo em terreno conhecido consegui ir entrando e saindo de vários armazéns num labirinto de portas, estantes, armários, lixo. A polícia continuava atrás de mim. O meu pé entretanto falou com o meu cérebro e o meu corpo na resposta decidiu parar. O meu pé inchava e quase explodia dentro do meu ténis. Ainda bem que eu gosto de abotoar bem os sapatos, porque acho que o meu pé estaria esta hora a latejar cá fora e a suplicar um sacrifício. Sem alternativa, só tive hipótese de me agachar e esconder atrás de uma secretária. O buraco por debaixo do tampo passou a ser o meu novo esconderijo. E durante alguns segundos, só ouvia o bater do meu coração. Mas no sítio errado. Não batia no meu peito; latejava no meu pé. Entretanto a porta abrira-se com um grande estrondo:
-Ei...sabemos que estás aqui dentro.
-Sim, podes fugir mas não te podes esconder.
-Gostei dessa linha de texto. Onde é que tu ouviste isso?
-Eh, acho que foi numa capa de um disco lá do meu filho...
-Ah...por instantes pensei que fosses dizer que tinhas lido num livro.
-Ei.calma aí..Livros? Livros só escolares
-Ou de gajas. Nesses também se aprende.
-Noutro dia fui com o meu mais novo até ao hipermercado e comprei “manuais escolares”.
-Pois é, hoje em dia ninguém diz “livros escolares”. - E subitamente gritou mais alto - Ei, aparece, nós sabemos que estás aqui. Mas com calminha.
-Vamos contar até três?
-Não. - deixo de ouvir os seus passos, tenho a certeza que pararam, embora continuem a falar - Mas também, não percebo porque é que mudam os nomes. Podiam-lhe chamar “Livros para a escola”.
-Pois podiam, mas repara que “Manuais” tem mais a ver com o ensino, com o facto de aprenderes.
-Não percebo porquê.
-Tu compras um DVD, um electrodoméstico, uma varinha mágica ou uma máquina de barbear. O que é que aquilo traz em comum?
-Um fio para ligar à corrente?
-Além disso. Vem com um manual de instruções. Um manual serve para te ensinar. Para aprenderes a usar. Logo a escola, sendo uma máquina confusa, também traz um manual.
-Mas seguindo esse raciocínio também deveria trazer uma “Garantia”.
-Garantia?
-Pois, caso as coisas corressem mal durante 24 meses, podíamos chegar lá e dizer: “ó amigo, troque-me lá esta Matemática que isto não pega de jeito nenhum!”
-Tens razão, mas..
De repente um enorme ruído veio interromper a conversa destes homens. Eu não fui responsável por ele, já que continuava quedo. Uma enorme placa teria deslizado sozinha e caído com estrondo. Os polícias decidiram então ir verificar a causa do barulho. E como estava bem perto de mim, a probabilidade de ser encontrado era grande. Desta vez decidiram falar mais baixo mas deu para perceber que iam dividir-se, cada um deles ficava responsável por uma parte do armazém.
Eu continuei agachado, na esperança de não dar nas vistas. O pé doía-me cada vez mais. Não tinha qualquer possibilidade de fuga, a porta de entrada era a única hipótese mas se me levantasse seria um alvo fácil. Ainda por cima com o pé neste estado. A coisa estava preta. Tão preta que quando levanto os olhos vejo um pequeno gato preto à minha frente. Olhava para mim como se eu fosse o primeiro humano que via. E quando se preparava para miar eu fiz-lhe um pequeno sinal para se calar. E ele parou. Olhando mais para a frente consigo ver outro gato, bem maior. Possivelmente a mãe. E depois percebi que eram eles os causadores do barulho, já que o seu refúgio estava bem próximo de mim.
Oiço os passos de um, ele aproxima-se lentamente, em poucos segundos e estaria pronto a encostar-me a arma à cabeça. Mas é nesse instante que a gata se apercebesse da chegada do forasteiro, e num movimento felino nunca visto, salta para cima do polícia. Este assustado começa aos berros, o colega rapidamente se aproxima e conseguem enxutar a gata.
-Fosga-se, Joaquim, foste atacado por um gato.
-Obrigadinho por descreveres a situação. Pelo miar e pelas garras, por instantes pensava que estava a ser trucidado por uma torradeira gigante com tenazes de santola ....merda... estou todo arranhado. Olha para esta merda.
-Xiii...foda-se, o gato rasgou-te as calças todas, e agora?
-Agora, quem é que paga esta merda? Sou eu, isto vai-me sair do pêlo. Odeio gatos, ainda por cima pretos. Dão azar a um tipo, vê-se porquê.
Um rádio começa a cuspir sons.
-Alpha Tango 505. Por favor, indiquem a vossa localização.
-Daqui, Alpha Tango 505. Estamos numa perseguição a um suspeito de assalto a uma loja. Neste momento estamos junto à EN 435, numa área de armazéns ilegais, over.
-Localizaram o suspeito, over?
-Ainda não, apenas localizámos o armazém que serve de abrigo a todos os objectos roubados, over.
-Bom, precisamos de apoio policial junto da EN 342 que fica junto de vocês, over.
-Abandonamos o local, então, over?
-Sim, alguém da Central foi destacado para o local onde se encontram, over.
-Over, roger, tango, alpha, falcon and out.
-Pelos vistos, estamos despachados daqui.
-É melhor assim, já estava farto disto e o bacano já deve estar a milhas daqui. Mas antes de irmos, empresta-me aí a tua arma para dar um tiro no gato.
-Ei, porque é que não usas a tua?
-Foda-se, nunca ajudas um gajo...
E assim, sem mais nem menos foram-se embora. Passados alguns minutos volto a ver o gato pequenino, a olhar novamente para mim. Levanto-me da secretária e fico a olhar para o bicho, ele que me deita um olhar ternurento, carinhoso. Tem de ser meu. Decidi levá-lo. O problema foi convencer a mãe. Mal eu me levanto, ela atirou-se em voo na minha direcção. O meu primeiro impulso foi puxar a perna para trás e quando ela vem lançada, consigo dar-lhe um pontapé de tal forma que vejo a gata voar, bater na parede e ficar imóvel. Mas se a gata não ficou bem eu fiquei ainda pior porque o grito que dei de dor lancinante revelava que o pé escolhido tinha sido o que me doía. Fiquei ali uma valente hora a penar, em dores. O gato pequenino preto rondava-me, miava, ronronava. Já não tinha mãe, arranjara uma nova. Vou levar-te. Um gato preto que me dera sorte. O nome? Joaquim, em honra ao polícia que a tua mãe rasgou.
Semanas depois, aqui estou eu, com ele a ronronar-me no peito. Não estou em casa, essa está mais do que vigiada pela polícia. Neste momento a minha residência é emprestada. Os donos possivelmente estão de férias e eu fiz o meu "check-in" há alguns dias. É óbvio que não posso ficar aqui durante muito tempo mas também não é fácil sair à procura de novas instalações. Estas agradam-me porque até tenho direito a uma arrecadação óptima. Ficou com muito espaço depois de eu ter despachado tudo o que lá encontrei e que tivesse valor comercial. O Joaquim também gosta da casa, principalmente do chão que é bastante escorregadio. As suas manobras nas curvas, as suas corridas e posições felinas são um aconchego que sinto na alma. Não há nada que eu mais goste do que chegar a casa, depois de um cansativo dia de trabalho, e ver a minha criança olhar para mim.
Vou fazendo zapping pelos canais de televisão, uma televisão mínima e muito ranhosa que trouxe da cozinha. A que estava na sala já foi despachada, o mesmo aconteceu à aparelhagem, aos CD e DVD originais que encontrei. E o facto de estar sentado num sofá em pele a ver televisão numa televisão ranhosa – que não despachei – fez-me pensar no ataque da globalização ao negócio dos assaltos.
A televisão falava em tumultos, violência e agressões de alguns milhares de manifestantes num desses encontros dos países mais ricos do mundo. Estes manifestantes, jovens, levantam cartazes da mesma forma que arremessam pedras. É uma intifada ocidental contra a globalização. Também eu, naquele instante tornei-me um acérrimo defensor das lutas contra a globalização. Este movimento dos países mais ricos é um atentado contra o meu negócio.
Eu ainda sou do tempo em que as marcas tinham valor. Hoje, por causa da globalização, surgem marcas coreanas, chinesas, tailandesas, cipriotas a cada minuto que passa. Televisões de marca que valiam fortunas agora não valem nada. Uma pessoa entra em casa de alguém que se supõe ter dinheiro e dá de caras com uma televisão enorme mas com uma marca mais difícil de pronunciar que “Vladivostok”. E quem é que compra uma televisão com um nome de um coreano? Ninguém. Quem é que compra um DVD gamado que se for à loja custa-lhe dois pacotes de bolachas? Ninguém. Até os CD e DVD sofreram uma deflação desde que o mercado ficou entupido com produtos contrafeitos. A culpa é da globalização que tornou alguns dos objectos mais apetecíveis em objectos vulgares e sem valor. E dou por mim a comprar revistas de tecnologia para saber o que está a dar. Descubro consolas, projectores, leitores de mp3 e home cinemas. Por um lado são mais maneirinhos de gamar por outro lado é preciso estar sempre a baixar o preço porque a concorrência das lojas é muito forte. São promoções, pontos, devoluções, etc. Este negócio não está fácil. Por isso, o meu problema foi ter mudado para a droga. A minha mãe dizia: “o problema das drogas não está no vício, está na ressaca.”. Eu descobri que as drogas trazem muitos outros problemas.
quinta-feira, agosto 10, 2006
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2 comentários:
Confesso que não li tudo, mas desde já ficam os meus parabéns. Este é sem dúvida a Ilíada dos posts, a Odisseia da blogosfera, o post mais longo que já vi :)
Caro Mitra
Qualquer dia passas a edição impressa! Continuo com esta estranha mania da análise do discurso e acho que a tua sintaxe não me é estranha. Ainda por cima agora que surgiu mais um pseudónimo... Desculpa, mas ando numa fase desconstrutivista! Será que fazes posts ao fim de semana? Isso arrasaria as minhas suspeitas!
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