segunda-feira, agosto 14, 2006

Joaquim- Capítulo II

Importante: aqui forma-se um enredo partilhado entre duas pessoas. O capítulo anterior encontra-se mais abaixo.


Capítulo II

Livrei-me da televisão de 30 cm. Na verdade, troquei-a por um maço de tabaco à saída de casa. Quando digo “saída”, funciona como uma pequena transferência de residência.
A segunda casa que encontrei é bem mais humilde que a primeira, o que no ramo da gatunagem significa que há muito menos coisas para deitar a mão. Mas tem espaço e algum cachet o que é óptimo. O Joaquim também deu o seu aval.
Estas casas também funcionam como um centro comercial para mim. Há sempre comida – graças a Deus que os tugas têm sempre comida em casa – roupa, calçado e televisão. Cedo descobri que não sou o único ladrão da casa. Quem habita nela tem uma box descodificada, com todos os canais disponíveis. Como é que eu sei? Bom, quando estive a abrir a correspondência – vocês nem imaginam a quantidade de cheques que se encontram nas correspondências – reparei que o seu proprietário apenas paga o serviço base. Melhor para mim que futebol e sexo misturam-se ao sabor da bebida que se vai descobrindo nesta casa.
Como devem perceber tudo o que preciso vou arranjando. Comida e vestuário não é problema, entretenimento também se arranja e a minha segurança é feita pela protecção de uma pequena arma de 9 mm.
O que é que faz um pequeno assaltante de casas, necessitar de uma arma de protecção? Porventura julgareis que devido à minha actividade mas este é um ramo onde armas de fogo são desnecessárias. Funcionamos melhor com clips para fechaduras, no engenho das fechaduras e nos casos mais dramáticos nada que um pé-de-cabra não resolva. Pois, mas esquecem-se de que estou dedicado ao pequeno tráfico. O negócio ía tão mal que tive que me virar para terrenos desconhecidos. Entrei na droga. Não no consumo mas no gamanço. O esquema era simples: ver quem era o dealer na zona, dar-lhe um enxerto de porrada, ficar com o produto e vender a cena a um preço mais vantajoso. Pensei eu que era assim que se fazia. Vim a descobrir que não.
A parte do dealer foi fácil, fazer a festa também, ficar com o produto foi apenas uma consequência. O problema surgiu no instante em que fiquei com a branca na mão. Não fazia a mínima ideia do que fazer. E dei por mim com 9 doses individuais na mão e com o Jolas à perna.
O Jolas, alcunha para um tipo franzino que fazia todas as suas refeições à base de imperiais, era apenas e só o grande lobo que controlava a alcateia de dealers da zona. E já se sabe que estas organizações têm sempre uma hierarquia. O dealer, mesmo com a cremalheira em estado deficiente, queixou-se à patente mais alta e de repente já o Jolas queria saber quem era o atrevido que entrara para arruinar o negócio.
Tornei-me um dos tipos mais procurados da zona. Não pela polícia mas de todos aqueles que trabalhavam para o Jolas. Não era uma questão de droga. Apesar de ser dinheiro era também uma questão de honra e de orgulho. Nada. Mas mesmo nada podia interferir na zona do Jolas. Uma zona em total sossego, com a polícia controlada e e não era eu que ía estragar a festa. Eu precisava de ser encontrado e chamado à razão, talvez com um tiro na cabeça. Fez-me lembrar uma discussão entre o Asterix e o Obelix, numa das alturas em que eu lia livros, “Obelix, em relação aos romanos, bates primeiro depois fazes as perguntas.”. Acho que comigo a questão era disparar primeiro, a parte das perguntas é dispensável. Já não estava escondido, agora sentia-me preso nesta casa. Os passos na rua teriam de ser bem medidos. Mais urgente ainda, precisava de mudar de poiso, outra zona, mais segura.
Procurei roupa no armário. Desta vez escolhi umas calças de fazenda cinzentas, uma camisa com umas riscas fininhas azuis, um casaco cinzento. Quanto aos sapatos, bastava dar uma esfrega nos meus. Se as roupas assentavam como uma luva, tive azar nos sapatos já que o dono da casa só calçava números barbatana. Fiz a barba com uma lâmina nova, usei o desodorizante do homem e, como não podemos armar-nos em esquisitos, acabei por lavar os dentes com uma das duas escovas que encontrei. Quando olhei para o espelho fiquei impressionado com o meu novo visual. O Joaquim não ficou surpreendido com a mudança. Os animais são assim, conhecem o dono à distância, estejam eles a cheirar a cavalo ou ao melhor perfume francês.
Desci até à sala e quando olhei pela janela vi a noite cair apressadamente. Esta seria a minha última noite nesta casa e decidi fazer uma pequena festa de despedida. Encontrei na cave algumas garrafas de vinho. O conhecimento que tenho de vinhos é equivalente ao conhecimento que possuo de Física Quântica. Mas compenso a nulidade com a experiência. E essa diz-me que o melhor vinho deve ser aquele que tem mais pó na garrafa. Normalmente guarda-se o melhor vinho para a melhor ocasião. Para mim ela tinha chegado com a minha eminente partida. Em segundos as minhas opções ficaram limitadas a três garrafas e como a virtude está no meio trouxe a que se encontrava mais ao centro. Voltei a subir.
Diriji-me então até ao frigorífico, tirei um saco de camarões pequenos do congelador, cozi esparguete, abri a garrafa, liguei o canal de música clássica e preparei-me para o festim. Eu à mesa com o esparguete, o Joaquim no sofá deliciado com os seus camarões. Tinha a impressão que em cada dentada olhava para mim, agradecido. Não tocou no vinho. Fica mais para mim.
Quando acabei a refeição, meti as doses de droga no bolso do casaco, guardei a arma no bolso de dentro e peguei no Joaquim.
-Ena, estás a ficar gordo. E a crescer depressa.
Levantei-o no ar. Ele miou baixinho. Não estava a achar piada nenhuma à altura. Voltei a baixá-lo e ele começou o ronronar. Juntei-o ao meu peito. E estava eu concentrado neste momento de carinho quando oiço um carro estacionar. A minha experiência em casas, fez-me escolher esta por uma razão muito simples: ausência de vizinhos numa zona muito tranquila. Portanto, visitas inesperadas a estas horas não era um sinal muito animador.
Aproximei-me da janela e ao espreitar vejo 4 homens sairem do carro, olham suspeitos para todos os lados e depois para a casa. A casa está fechada, portanto às escuras. Eles aproximam-se da porta, dois deles levam a mão ao bolso do casaco e não me parece que estejam à procura das chaves. Também não me parecem os donos da casa. Pelas fotos que encontrei em toda a casa, são um casal de velhos, estrangeiros. É altura de me pôr a milhas.
A vantagem que um assaltante de casas tem em relação a uns meros deliquentes é a que os primeiros conhecem os cantos à casa, sabem por onde entrar, como sair, onde esconder. Conhecemos as paredes das casas como se fossem nossas, sabemos caminhar nelas às escuras porque é assim que trabalhamos. A nossa visão é constantemente noturna, não precisamos daqueles instrumentos de precisão e visão que agora os militares usam. É como se tivéssemos sido nós a projectar a casa, a fazer as suas paredes, degraus, a sua arquitectura e decoração. Todos sabemos que dentro de uma casa, só se ligam as luzes das divisões que não têm saída para o exterior. Um assaltante de casas deixa sempre uma porta aberta, uma saída fácil sempre que as coisas tornam-se difíceis. É tudo isto que nos distingue de uns deliquentes que só sabem carregar num gatilho. Conseguimos ser arquitectos, cientistas e malabaristas num só.
A minha saída estava numa janela de sotão que dava acesso a um pequeno parapeito. Através daí bastava um pulo até a uma placa superior que abrigava a porta das traseiras. E depois bastava um salto de 2 metros e meio até ao chão.
É óbvio que foi assim fácil. Estavam 4 putos à minha procura naquela casa – a questão está em como conseguiram essa informação – e eu já estava longe, bem longe. Sentia o meu coração aos pulos, à medida que caminhava apressadamente pelas ruas vazias. No bolso de dentro do casaco, sentia o ronronar do Joaquim no meu peito. No segundo bolso do casaco, 9 pacotes de pó. No bolso das calças, uma arma de fogo de 9 mm.

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