quarta-feira, agosto 29, 2007

Joaquim - Capítulo IX

Tal como um prematuro, sete meses depois nasce mais um capítulo da saga que faz do Manuel Luís Goucha parecer um tipo viril, tal é a sua amplitude de conteúdos e variedade de estilos literários. Não se preocupem, as capacidades dos autores estão exactamente como estavam 7 meses atrás: sofríveis. Mas a história, essa está melhor do que nunca.



Sentia-me pesado, mais pesado do que na época em que vivia à conta daquela gata persa no Restelo. Isso sim, era vida: seis refeições por dia, sexo à discrição e passeios ao fim da tarde até ao Aquaparque. Infelizmente, um camião-betoneira não pensou da mesma forma e foram precisas três horas para raspar a Mimi dos pneus...mas, divago e essa merda não me tira o peso do estômago.

O Mitra e o velhadas estão para ali às turras, aquela trampa mais parece um espectáculo do Luís de Matos, com tanto truque e macacada. O pior é que não me lembro do que me aconteceu depois do velho me ter fechado na sala com ele. Violado não fui, que ainda me lembro do estado em que ficou o cu do Palhetas, quando foi apanhado num beco, por dois taradões lá para os lados de Miraflores, aquilo parecia a entrada de um depósito de gasosa do carro. Divago novamente, dá-me para isso cada vez que tenho o estômago cheio. Mas, cheio de quê? Não como nada de jeito há uns tempos e só me lembro do velho se aproximar de mim com um bafo que cheirava a alfaces podres antes de tudo ficar preto.

Olha, agora estão os dois palermas a olhar para uma carta no tecto. Fodasse e eu sou o quê, empalhado? Espera aí que já aprendem. Saltei o mais rápido que o meu cu pesado me permitia e lancei-me de garra feita, qual Vítor Baía dos tempos áureos, aos tomates do Mitra, já que o Gonçalves me metia um bocado de medo. Curiosamente, o banana não reagiu com a ternura habitual, que normalmente se traduzia numa biqueirada no meu focinho, o que me alertou para o facto de alguma coisa estar errada.

De repente, o Mitra agarra na ponta e mola que normalmente usava para limpar os ouvidos e ocasionalmente assaltar sexagenárias na zona do Areeiro e só o oiço dizer:

- Esta merda não fica assim. Tira-me lá o pó de dentro do cabrão do gato, que eu faço-te essa merda na mesma, só pela Catarina. Mas digo-te, se me estás a contar uma história eu...eu.... (era tão típico do Mitra começar uma ameaça sem saber como completá-la) eu venho cá e corto-te os cabos da TV Cabo e sabes bem o tempo que eles demoram até voltarem a pôr isso a funcionar outra vez.

Gonçalves ria-se com ar sinistro, típico também de ex-polícia com aspirações cabalísticas:

- Realmente, mais estúpidas do que tu, só mesmo as tuas ameaças. Eu já tenho TV em sistema wireless, o plano de reforma da polícia tem dessas benesses. Mas, deixemo-nos de brincadeiras, o gato vai como está, porque o meu contacto precisa dessa tua encomenda para fazer uma pequena....operação. Por isso, senta-te aí enquanto eu faço um telefonema, para confirmar os detalhes quando chegares ao Ludoviquistão.

Não pondo em causa a estupidez do Mitra e o facto de eu até gostar de viajar, apesar da maior distância a que alguma vez estive de Lisboa foi quando fui à Costa da Caparica com um dos meus antigos donos, que me levou a ver o mar. Gostei muito, apesar de ter tido alguma dificuldade em sair do saco e a vencer a ondulação para voltar à praia...merda para as divagações, lá estou eu de novo. O facto era, que eu tinha cinco pacotes de leitinho em pó no estomago e um anormal que pensava que o velho lhe ia trazer uma gaja do mundo dos mortos só para o consolar. Estou bem fodido estou, vou é acabar nas notícias das nove, como o primeiro gato-traficante do mundo.

O Mitra parecia estar meio zombie, mas isso talvez fosse do cheiro a nata azeda que vinha dos sofás do Gonçalves. Quanto a esse, fazia o que todos os velhos fazem quando usam o telemóvel, gritava que nem um desalmado e queixava-se da qualidade da linha.

- HÃ?? VAIS O QUÊ? FALA MAIS ALTO?
- ....
- VAI LÁ FORA, AÍ NÃO TENS...TÁS A OUVIR? TOU? TOU? NÃO DEVES TER REDE CARALHO!!!
- OLHA, JÁ PERCEBI QUE...TOU? NÃO SE OUVE PÁ. OK, SIM...HÃ?? ESTÁ BEM, O QUÊ, UMA VARA DE MARMELEIRO? NÃO? AH, VELHO PANELEIRO É ISSO MEU PALHAÇO? NÃO ESTOU A OUVIR...AH, SIM SIM EU TENHO ALGO MELHOR QUE O DINHEIRO. FICA ENTÃO COMBINADO. UM ABRAÇO, CUMPRIMENTOS AOS TEUS.

Ao que parece, a tortura audiofónica tinha terminado. O Mitra levantou os olhos para o Gonçalves, que usando a antena do telemóvel, um modelo que devia ter sido dos primeiros comercializados em Portugal, limpava a orelha direita, enquanto coçava ostensivamente os testículos com a mão livre.

- Caros montes de merda, depois do que ouvi, vou ser benevolente convosco – a expressão de Gonçalves dizia-me que ele era tão benevolente como uma tábua é sensível – esqueçam o Ludoviquistão, esqueçam o avião, esqueçam o prazo de três dias.

- Epá, és um porreiro – avançou o Mitra – sempre soube que tinhas um bom fundo...

- Sim, tenho o da reforma da polícia, mas cala-te meu merdas que ainda não acabei. O meu contacto teve de sair do Ludoviquistão, depois de um acidente numa refinaria ter contaminado aquela cena toda. Acho que ainda deve estar a sofrer de efeitos secundários, porque está quase surdo, mas fugiu do país.

Por falar em acidentes, o estômago cheio estava a dar-me gases, o que me fazia lembrar um mecânico em cuja garagem já tinha vivido e que tinha sido a primeira pessoa que me provou, várias vezes ao dia, que a Humanidade por dentro está podre. Epá, lá estou eu a divagar e o Gonçalves não se cala.

- Por isso, tu e o teu gato, têm novos planos. Vão ter de ir a Manta Rota, buscar a chave, porque ele chega hoje ao Algarve, em trânsito para Zanzibar. Se até ao final do dia de hoje eu não tiver a chave meu palhaço, podes começar a tornar-te apreciador de Naturezas-mortas, já que vai ser só assim que vais ver a tua querida Catarina. Além disso, ele tem o antídoto para o veneno que deixei junto com a droga no teu gato. Está feito para só o matar ao fim de três dias, mas sabes como são estes produtos chineses, nunca fiando.

Droga, veneno, Manta Rota??? Não ouvia tanto sinónimo junto, desde aqueles concursos que o António Sala apresentava na televisão. Mas, não me agradou nada aquela parte em que eu morria nesta história do Gonçalves. E, pela cara do Mitra, um Ultra Levur devia dar jeito, já que parecia que estava a ponto de se ir borrar todo.

- Mas...mas – o Mitra estava a fazer tilt – Manta Rota? Eu nem sequer tenho um bronzeador decente e os meus calções estão me justos e....

- Não tenho tempo para esses queixumes e tu também não deverias ter, com o que está em jogo. – Gonçalves abriu uma gaveta e tirou de lá uma folha de papel, em que escreveu algumas coisas e duas notas de 50 Euros – Aqui tens as indicações que só deves abrir depois de chegares a Manta Rota e, como imbecis como tu andam sempre tesos, toma lá 100 Euros para a viagem. Não gastes tudo em bebida meu animal e pede recibos de tudo, que me dá jeito para o IRS. – E com isto, abriu a porta da fente.

O Mitras pegou-me ao colo e saiu sem dizer uma palavra, com as notas e o papel no bolso. Ainda ouvimos o Gonçalves a arrotar sonoramente, como que dando o sinal de partida para esta epopeia que estava agora a começar. Um dia para salvar o mundo, ou melhor, para me salvar a mim, o que vai dar ao mesmo. A cena da gaja morta, da chave e tudo mais são acessórios. Sim, fodasse porque essa história dos gatos terem porradas de vidas é um mito urbano. Tenho uma só e não me apetece perdê-la com pacotes de coca enfiados pelo cu acima...