Após um longo período de recuperação do autor, depois de mais uma tentativa de desintoxicação - sem resultados, diga-se - surge mais uma página da vida do mitra Alfredo e seu fiel servo Joaquim, uma história que começa a tomar proporções de uma novela da TVI. Este é mais um capítulo. Leia os anteriores se quer ser feliz.
O trinco desliza suave numa fechadura oleada imaculadamente e oiço a porta fechar. “Que raio de tipo!”. Não sei porque raio me senti inferiorizado e acorrentado como se o seu tom de voz áspero comandasse todos os meus movimentos. Mas mais preocupante era o olhar demoníaco insistente no pobre Joaquim. O que poderia fazer a um gato? Tudo. Lembrava-se agora que quando era mais novo, os gatos eram dóceis cobaias de estranhas formas de tortura, de novas formas de dor executadas com perícia e sadismo q.b. Uma vez lembrou-se de atar as patas traseiras e pendurou-o a um andaime de umas obras ditadas ao abandono próximo de casa. As patas da frente ficariam esticadas a um centímetro do chão. Lembra-se do tempo que perdeu para que esta medida fosse meticulosamente respeitada. Era imprescindível que o gato ficasse com uma falsa esperança de atingir o chão e que, ao agitar-se e mexer-se para isso, provocaria um alagamento do de sangue por todo o cérebro até à perda de consciência total. Alfredo conseguiu provar, aos dois anos de idade que os gatos não são mais que os outros animais, apenas têm uma vida.
Alfredo poderia estar aqui páginas consecutivas a descrever todas as suas habilidades de tortura mas neste instante só queria arranjar uma forma de salvar Joaquim das garras do Gonçalves.
Olhou para a porta fechada e estranhamente nem um som escorria por entre as frinchas. Aproximou-se e encostou os ouvidos à porta na esperança de ouvir algum ruído que pudesse dar-lhe alguma pista do que acontecia do outro lado. Nada. Silêncio absoluto. Decidiu então afastar-se da porta e circular um pouco pela casa. Aproximou-se da janela que dava para a rua e assistiu aos últimos movimentos policiais. Uma ambulância ligava as sereias e partia a toda a velocidade por uma cidade que começava a acordar lentamente. Outra mantinha-se preparada, de portas abertas, à espera de mais um corpo. Os mirones e curiosos, mantidos à distância por uma fita branca de riscas vermelhas, debatiam-se em justificações e curiosidades, sobre o aumento da criminalidade na zona, das sarjetas entupidas e da falta de policionamento na área. Um polícia procurava indícios no exterior, segurava uma lanterna e apontava-a para o chão calcorreando a calçada. Outro olhava fixamente para a árvore que eu escalara horas antes. Aproximou-se com uma lanterna e rondou toda a copa da árvore em busca de algo. De repente, desabotoou o fecho e alagou-se todo em urina. Eu respirei bem fundo mas logo deu um salto de sobressalto. Das escadas veio um enorme estrondo. Aproximei-me do óculo da porta e espreitei lá para fora:
-Foda-se carlos, Foda-se. – Gritava um paramédico para um dos colegas – Olha-me para esta merda. Foda-se carlos.
-Tem tento na língua – respondeu-lhe o outro.
-Tenho tento o caralho, foda-se Carlos. Olha-me para esta merda, deixar cair a morta pelas escadas abaixo!
Naquele instante Catarina era a mais bela morta que alguma vez vira por um óculo de uma porta. Ali despojada de tudo, apenas coberta com um lençol branco e com um braço virado do avesso, já com mazelas a descoberto e escoriações à vista de todos.
Voltaram a colocar o corpo em cima da maca e foram a barafustar o resto do caminho. Ouvi a porta de cima a ser fechada e assisto à conversa dos últimos agentes que ainda restavam no prédio. Vinham a descer vagarosamente discutindo os resultados do Campeonato Mundial de apneia de piscina curta. Foram também os últimos passos que ouvi nas escadas.
Voltei a dar atenção à casa do Gonçalves. Uma lareira que dava sinais de não fazer muita companhia. Por cima desta estavam penduradas duas cabeças de animais selvagens provenientes de alguma caçada: um tipo da Damaia e, por incrível que pareça, o Cabeças. Um tipo que eu conhecera no Bairro do Fim do Mundo e que se safara sempre da choldra. Pelos vistos não conseguira fugir do Gonçalves que assim o preservava como uma espécie de troféu. Lembro-me que o Cabeças tinha muito orgulho nos seus olhos, dizia que convencia as putas todas a fazer descontos, só pelos lindos olhos dele. Hoje tinha os olhos esbugalhados, de surpresa de ali estar e duvido que alguém lhe fizesse um preço-amigo. Não posso deixar de achar irónico como um tipo chamado “Cabeças” acabou por ver a sua cabeça pregada numa parede.
Do outro lado da sala encontrei uma enorme estante repleta de livros. Percorri alguns dos títulos e curiosamente quase todos versavam sobre o mesmo assunto. Antiguidades, Relíquias, Tesouros Secretos da Humanidade, Gizé e o Faraó, Anita vai ao Templo de Tutankhamon entre outras preciosidades.
No centro da sala, a mesa e, meu Deus, a minha arma. Rapidamente segurei no ferro e procurei os sacos de droga que deveriam estar repousados em cima da mesa. Nesse instante a porta abre-se e vejo o Gonçalves com o gato nas mãos, fazendo-lhe festas. O gato ronronava e eu apontei-lhe a arma:
-Meu cabrão do caralho, agora não te safas. Pensas que eu sou o quê, velho do caralho? Podes espreitar lá para fora porque vais perceber que os teus amiguinhos já não estão por cá.
O Gonçalves mantinha-se sereno a fazer festas ao Joaquim.
-Não me ouves, caralho? O que é que fizeste ao gato? Larga o gato, foda-se. – Eu ía aumentando o tom de voz e o olhar do Gonçalves mantinha-se tranquilo. – Não me ouves, velho do caralho? Põe já o gato no chão antes que...
-Antes que.... – interrompeu-me com um olhar cândido e de ternura na voz.
-Foda-se, mas é preciso tirar um curso para perceber que eu tenho uma arma apontada? Quem manda nesta merda sou eu. Poe o gato no chão e....aliás...onde é que está a droga que eu tinha metido na mesa?
-Ah, finalmente uma pergunta interessante. Mas se queres ouvir a resposta aconselho-te já a baixar a arma, senão as coisas azedam.
-Azedam mas é para os teus lados, ó ancião. Já sinto o cheiro das ferdomonas...
-Feromonas, pá...
-Essas também...de tão borrado de medo que estás. Ó cientista, põe a merda do gato no chão, dá-me a droga de volta e saímos daqui de fininho como se nada tivesse acontecido, amigos como dantes. Pode ser ou preciso que a arma fale por mim?
Gonçalves colocou o gato no chão com vagar, deu dois passos na minha direcção e encostou a arma ao seu peito. Confesso que fiquei nervoso com o gesto:
-Estás armado em menino, é? Tu daqui não sais, palhaço. E vais fazer aquilo que eu mando, ouviste, cabrão? AQUILO QUE EU MANDO!
Ouviram-se disparos quando puxei três vezes o ferro. Fechei os olhos instintivamente para abafar o impacto visual. Quando os abri, o cabrão do velho mantinha-se vivo à minha frente, ria-se da minha cara incrédula e tira do bolso o carregador da arma.
-Não sei como é que consegues matar alguém sem balas. – E antes de obter uma resposta à altura deu-me um pontapé na minha única zona erógena. Encolhi-me e fiquei prostrado a ganir durante algum tempo enquanto ele explicava o seu plano.
-Agora que estamos mais calmos, já podemos falar como duas pessoas civilizadas. – Voltou a pegar no Joaquim e reparo que o gato está demasiado dócil.
-O que é que fizeste ao gato, velho? – Perguntei-lhe eu entre gemidos.
-Estás a falar deste gatinho querido e fofo? Pois o teu gato é uma peça fundamental neste meu esquema que eu estou a montar. Mas porque eu não confio em gatos pretos, preciso que o dono dê uma ajuda.
-Foda-se...
-Calma, é simples. Neste momento, o teu doce, terno e tenro gato ainda está sob o efeito de uma anestesia.
-Anestesia?
-Por vezes é necessário controlar os instintos animais. Neste caso foi necessário introduzir 5 pacotes de droga no estômago do bicho e 5 comprimidos de um antilaxante.
-Não estou a perceber nada, foda-se.
-Calma. As melhores coisas chegam sempre àqueles que esperam. Gostas de viajar?
-Não percebi a pergunta.
-Então, nesse caso aqui vai a resposta. Estou a oferecer uma viagem para duas pessoas, quer dizer, no teu caso, para uma pessoa e um gato até ao Ludoviquistão.
-Continuo sem perceber.
-Tu e o teu bicharoco vão fazer uma entrega a um contacto meu do Ludoviquistão. Em troca receberás uma chave enferrujada. Não a subestimes, pode estar carcomida pela ferrugem mas eis nela habitam poderes para os quais não estás preparado, pois trata-se da Grande Chave que revela todos os segredos do Templo de Zacarias da Babilónia...
-Vais trocar droga por uma chave que abre o centro comercial da Amadora?
-Ignorância Suprema, és apenas um servo e um peão ao serviço de uma tarefa maior.
-Maior que o centro comercial Babilónia? Eh pá...
-Essa chave terá de estar nas minhas mãos antes do sol atingir o máximo deslocamento a sul do planeta, antes do Solstício de Verão. Por outras palavras, tens apenas 3 dias para me trazer a chave.
-Senão, o quê, ó Velhadas das Chaves do Areeiro? Fazes umas mezinhas com cogumelos selvagens para que os meus tomates caiam?
O Gonçalves sorriu entre dentes e largou a bomba atómica:
-Se me trouxeres a Grande Chave, prometo-te que a Catarina volta a ter vida.
-Foda-se, ó velho do caralho. Mas estás-me a achar com cara de quê? Foda-se. Tenho a quarta-classe tirada, carta profissional de pesados e nome na praça. Achas que acredito nessa merda? Foda-se, a Catarina está morta, pulha de um cabrão, morta por um cabrão igual a ti. Mas mais novo do que tu.
-Cépticos como tu necessitam de ver. Vamos fazer o seguinte, então. – E aproxima a sua mão da minha cara. Encolhi-me com o movimento brusco mas ele foi mais rápido, mostra-me uma moeda e faz a pergunta fundamental– O que é isto?
-Isso, foda-se, é uma moeda de dois euros, ó caralho.
-E o que estava a fazer uma moeda de dois euros atrás da tua orelha?
-Foda-se, eu não tinha nenhuma moeda atrás da orelha.
-Então, como é que ela apareceu na minha mão?
A questão deixou-me perplexo, angustiado por nunca ter percebido como é que eu andava com uma moeda de dois euros atrás da orelha, tal como uma carraça, sem o saber. Estava eu ainda a procurar respostas às minhas dúvidas quando vejo o velho à minha frente com um baralho de cartas nas mãos. E voltou a propor algo:
-Escolhe uma carta.
-Qualquer uma?
-Sim, olha para ela e depois volta a colocá-la aqui no meio das outras.
Tirei a carta, olhei para ela e era um terno de paus. Mas quando voltei a colocar a carta, retirei-lhe o baralho das mãos.
-Pensas, o quê, ó Chaves. Sou eu a baralhar. – E baralhei aquilo. Foi então que ele se virou de costas e disse: - Baralha que eu nem quero ver isso – Eu baralhei, baralhei e voltei a baralhar – Então? Isso demora muito? – perguntou - Já está. – E dei-lhe novamente o baralho para as mãos.
O Gonçalves ficou a olhar demoradamente para o baralho e retirou uma carta do meio. Apontou-me a Rainha de Copas.
-Era esta?
-Ah Ah Ah. Foda-se velho do caralho. Não era.
-Espera. Então era esta. – E mostra-me um Valete de espadas.
-Ah Ah Ah, ó Chaves, estás a cair no ridículo, foda-se.
-Espera. Não me digas que é aquela? – E aponta para o tecto da sala. Fiquei branco e depois percorri todos as outras cores até ficar sem pingo de sangue. Ali, bem colada como um iman, a carta que tinha escolhido: o terno de paus.
-Da mesma forma que aquela carta ali apareceu, também posso fazer aparecer a vida à Catarina. Só preciso da Grande Chave.
-E porque não vais lá tu buscá-la, caralho?
-Tenho medo de andar de avião.
-Quantos dias tenho?
-Tal como o número da carta que escolheste: três.
sexta-feira, janeiro 19, 2007
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